quinta-feira, 17 de outubro de 2013

oito de setembro de dois mil e treze

Hoje, oito de setembro de dois mil e treze
Vênus e Lua se uniram no céu
A cósmica união foi vista por todos
Nenhum pudor impediu que as grandes
as eternas
se fundissem num só vagar


Nosso mundo, cada ente da interminável cadeia
lentamente parou e todos
- a humanidade inteira em cada rincão
da Terra, onde há paz e onde há guerra -
todos ficaram em silêncio, olhos fixos no alto
por tempo eternamente indeterminado
Tempo sem tempo em que se acasalavam
misteriosa Lua e tresloucada Vênus

Em todas partes do planeta, como num rito acordado
cabeças se elevaram e com mudo temor
assistiram à nua entrega, à tremenda transgressão

Astrônomos e astrólogos pegos de surpresa
não tinham ideia da dimensão do fenômeno
Além, muito além do que se viu no céu
e do que a ciência previra

A breve e definitiva entrada de Vênus
na Lua marcou algo que ainda não se sabe
Estão por aí decidindo o que foi, o que é e será
Novo desenho, recorte num velho mistério
agora marcado pela diferença
para todo sempre marcado
pelo desmaio venusiano
pela invasão sem tamanho
daquele corpo de estrela naquele rosto
redondo,manchado,maculado pelo humano

pelo desmaio
pelo desmaio
da deusa

(o que foi vai muito além do que se viu no céu)

Terra, Serra dos Pirineus

Terra, Serra dos Pirineus.
Horizonte que ainda não vi, desconheço. Não ainda. Conheço o mais geral, o conhecido de todos, fácil e oferecido à vista. Mas aquilo que a fotografia mostra, o que o dedo de minha filha fez ver, ser possível de ser visto, é o meu recorte na Serra, no cerrado, no distante horizonte que, já demarcado, já meu, ainda não toquei como dona. A posse é algo da ordem da ideia, do impensado, mas um papel me diz que sim, e a foto atesta que sim: há este lugar e ele me pertence na terra. Estranhamente meu aquele espaço clicado, grafado no papel virtual pela lente e pela lei papel-dependente. Assim, possuidora de um recorte na Serra, nos Pirineus daqui, sonho o horizonte, aquele, como a morada dos deuses à qual me foi dado acesso,  sendo destinada, ela que a mim veio. Eu descortinada por lá, a esperar por mim. Morada donde habitarei, em distintos tempos e estados (meus, de meu corpo), habitarei. Entre esconderijos, eventuais cavernas, sem barricadas, eu a esperar por mim num esconde-esconde fora do tempo. Entre as vozes gregas, romanas, latinas, africanas que escuto naquele espaço, que saltam das fotos, desde ele, chega a mim veloz, pertinente, o passeio por intermitências, territorialidades essenciais. Desde este espaço sonho outro o que talvez também me pertença e eu a ele, pertença que dizem antiga atualizada - eu sem nada saber. Serra dos Pirineus, o fragmento dela que palmilharei, com pés e sem eles,  o azul, o azul, o azul e pequenos cajus do cerrado em primeiro plano. Desapropriada de mim, possuo. Despertencida, pertenço. Sem terra nenhuma, à deriva a foto me localiza, um site no mundo este meu. E ela me fala, diz, sussurra, essa terra: é aqui, é aqui a tua terra última, a terra desde onde olharás sem olhos a terra, essa Terra, céu por todos os lados, vento poliglota a guiar-te, vento conhecedor de todas as mitologias, pássaros de infinitos nomes alardeando a alegria do espaço. Adivinho, pressinto na foto, no papel que revela, a cortina sobre uma abertura, essa abertura dos espaços que são de fato espaços, desmesurados, abissais, aqueles que expõem, que não abrigam nem acobertam, expõe despudoradamente.
Desenho um flamboyant escandaloso na memória, na memória do que há de ser, do que não sei, memória  futura, reminiscência. Embaixo dele. Ventando nele, na explosão laranja ventando o vento que me demarca, estou lá, aqui sentindo o estar lá, lá na Serra, no alto, onde há essa terra que o número doze demarca, possuída por meu desejo e decisão, assinada por mim que a intuí e disse Sim. Um lugar para mim, para o que corpo carrega desse mim que não sei o que é (quem sabe?). Pertencimentos. Um depois desmesurado, impensável, possível apenas de ser pensado assim, improvável mas localizável território. A foto já me contém. Aquela que está lá já sou eu saltando com os animais, muito próxima deles, temor nenhum, conhecedora da língua dos pássaros, todas elas. Minha muda futura língua será assim, passarinha. Cantando desde agora.
(17 de outubro de 2013)



segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Fragmentos de poemas (ou Exercícios para uma essencialidade)

        I    de  Personagem Possível


 Entes vagos do universo
  Incendiados de ar
  entre carne e sangue
  a cor da terra.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Partes de mim a cada momento
retornas a mim como o sal.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
 Não há dúvida
 errada sou eu
 que te reinvento.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Lua, por que te desfazes?
Apaziguada manhã
 leva-me lenta entre teus ais.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
 O que fazer com o ar, peregrino retido?
  Anônimos deuses nos conduzem
  eles retêm o absurdo.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
  Não apenas o desejo
  mais do que o desejo a ânsia de fazer o poema
  prender-te a mim transfigurando-te em letras

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
    
   II     de   Matéria sem Nome


Arranca as conhecidas vestes
e busca teu lugar
(o coração necessita a cavidade da alma)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Não deves andar descalço
(os pés captam o impossível)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Após todas as mãos
o vazio
se descerra
fio que cose o corte
este novo vazio madura a larva
esta pequena ponte.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Como ser  fiel às histórias e contá-las simples?
Dizer: o leão que nos invade em meio à noite
morreu
Sonhar: ele fugiu por entre as árvores e por entre sombras
gritava

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
É preciso raptar a lembrança antes do amanhecer
soerguê-la
cimentá-la
construir a cidade
Partir então
sem alimento, roupa
olhos como pedras
migalhas de pão
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

III   de    Falas

O artista está sempre entre
ele mente ao dizer que permanece

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Mito-lógica

Ter linha
destruir labirintos

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Depois

Ao abrir os olhos pensou:
A onda que vem e nos lava
é o que nos mata

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

A frase perdida em teu corpo
aqui, parado
grudado
em minha retina

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Revisitando

a mesma luz o mesmo ângulo
a igualdade
da desigualdade

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Tarde

Só então soube
como tudo havia sido

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

dia após dia
poecorpóreos
letra por letra

interminável

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Biblioteca

(em que língua não me leio?)
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

IV de   Este fruto outro


Encontro

eu com meu corpo pouco
e minha resistência

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Recalcado

com um sopro reconstruir-te 
construir-te res fazer-te coisa
corpo em meu corpo sem sinais

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Ainda

O que fazer com este fruto outro
que é o amor?

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
A corda é ela
a palavra
Pá que remexe
prepara
a terra cheia
de larvas
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Prece

Deixar assim de lado a condição de sujeito
e sujeitar-se, objeto, a todos os sonhos
Para algo há de servir este momento
em alguma trama significará

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
De frente a este espaço geométrico
a esta ondlação sem sangue
minha sede sem objeto
afirma-se
Nem água nem corpos

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

IV  de   O caractere do sono - entre Oriente e Ocidente


Hutong

A concentração da vida e o sentido do mundo  - provisório, aeatório, sem razão.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
O antigo caractere do sonho é composto pela ideia-imagem de "bosque", porém de um bosque  que não está na terra, mas nas alturas, e da ideia-imagem de "noite". Em um bosque que cresce no ar, durante a noite. O sonho. Os corpos tão próximos, a noite nos hutongs.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
...caras dizendo sem cessar que para chegar até elas é preciso romper um vidro grosso com os pulsos sentir o sangue se misturar

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Poderia. Posso contar com detalhes coisas que vi lá fora, há muito tempo. No tempo em que sabia exatamente se era sonho ou não o que eu começava a contar.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Então ele disse que não lhes pedia que contassem fantasias, ele pagava por histórias.Histórias? Sim, coisas que tivessem vivido...Aí ele disse: adoro ficar sentado ouvindo elas falarem. Sentado? Perguntei meio sem jeito como era, se elas falavam antes, durante ou depois do ato. Não há ato, ele disse. Pago só para ouvir.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
...o que ela escuta como um discurso arrastado sobre ela, nela, fazendo com que tateie, arqueje entre tentativas mudas de encontrar o sujeito, o complemento daquela fala toda verbo.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨....poder retirá-lo naturalmente, mesmo sabendo ser ele (o desespero que se desveste) o reflexo de algo muito além de qualquer vontade, que se constitui da mórbida sombra de um desejo, um movimento paralisado. Poder ver essa explicitação fora de si, na roupa jogada na cadeira. Fora de si.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨Algumas vezes quase conseguimos apreender o tempo no espaço, bem onde estamos. Algumas vezes quase conseguimos passar da palavra ao ato, sem que nos impeça o escândalo, a aflição da evidência das coisas.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
O que está aqui à minha volta
está, esteve em outras partes
Nada é imóvel e tudo o é profundamente
....
No Livro das Mutações lê-se; é favorável seguir
E se seguir for permanecer?

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
O que se mostra se esconde
O que se toca desvanece
Soa, ecoa insistente
o sentido que só escapa
- aqui, acolá, agora, antes, após.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Somos todos sombras
fantasmas de histórias atemporais
Escribas judiciosos, porém,
a lidar com a escritura
com a contabilidade do mundo
como se...

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Tempo em que a pedra
em sua diversidade
e os corpos
em sua diversidade
revelam-se apenas
nada além
nada mais do que
pedra
carne
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

VI  de Coito com o real

A casa escuta o vento
as persianas açoitadas
os bons, maus ares de um cone sul
onde o mundo começa seu fim.
As cabeças de pedra
aqui continuam o que são
olham desde muito longe
vêm de uma terra onde o vento
e o trem ecoavam na noite.
Como um navio, a casa abrindo
os ventos. Na proa
as cabeças sugerem verbos:
recuperar, nomear, recortar.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

das coisas concretas em torno

Os outros, por todos os lados outros.
Rostos fora, tudo fora, tudo outro.
Empaco – paro, me empacoto – em meio a tanta
outredade.
Um pacote de mim, fechado e aberto,
 olhando sem parar pedaços
outros a discursar.
Sabe-se lá, sei eu lá
(lá, lá onde se reitera o Outro,
o porquê do outro)
- apenas imagino, sem agir imagino
escuto, vejo, sinto, cheiro
o ouriço que é o outro
no outro
inteiro, ouriço partilhado comigo e com o mundo,
falando desde espinhos.
Ou ou
- ou cedo ou venço
o ouriço em mim
essa coisa outra
a mesma.
E aí, e então, e lá,
em outro tempo,
sacudindo o outro, a veste dele,
avanço, avançaria, avançara
tirando o pó do tempo
no pensamento
obsessão do pensamento.
Com essa coisa outra, essa arma,
avanço, avançaria, avançara
esparramada num não-outro
esparramando
dentro, fora
de mim, de tudo, de cada coisa
dentro, muito dentro
sem sombra,
sem eco
como se fosse só
(como  se aquilo-isso tudo fosse
só)
apenas
esta simples coisa
qualquer uma
das coisas concretas
em torno






quinta-feira, 2 de maio de 2013

CELESTE




Celeste olhava o céu e o céu se confundia com seus olhos absolutamente azuis. A tarde chegava ao fim, como todos os dias. Era bom morar em uma rua larga, árvores antigas dos dois lados, sombras que se multiplicavam, que propunham brincadeiras ao seu olhar. Bom não ter um vizinho encarando você, viver num espaço que permitia amplamente a entrada do sol.
Ela precisava de luz, fundamental para sua pintura. Era uma mulher feliz. Tinha quase vergonha de reconhecer isto com tanta facilidade. Não podia ficar alardeando, não comentava com os outros a sua felicidade. Frente às histórias das mulheres que conhecia, frente à realidade que se escancarava por todos os lados,  sua felicidade era algo inadequado, precioso portanto.
Havia estudado, havia casado, tido um filho, fazia seu trabalho em casa, não precisava sofrer o que todos, todas que trabalhavam fora padeciam. O trânsito, as horas perdidas em carros e ônibus, a poluição, o ambiente competitivo do trabalho, a neurose das pessoas. Nada disto. Era uma mulher de sorte, de muita sorte. Amava e era amada de modo tranqüilo, pacificado. O marido era um homem resolvido, ganhava bem, gostava do que fazia, confiava nela. Seu filho era um rapaz bonito, inteligente, estudava, saía com os amigos, namorava.
Às vezes se perguntava por que havia tido este destino – e parava para escutar de novo a palavra escolhida, destino; e as coisas, os seres têm realmente destino? -  tão transparente.  Nunca encontrava resposta. Em suas leituras e viagens se aproximara naturalmente do conceito de karma.  Passou a aceitar com maior naturalidade seu destino talvez kármico, sua boa estrela, a estrela menos boa dos outros, a péssima estrela de tantos.
  Cada tanto,  ainda se perturbava; sobretudo com a exposição de chagas pelas ruas, em troca de dinheiro. Os corpos mutilados. Queria aceitar com sabedoria hindu esses corpos atirados e pedintes, mas quanto lhe custava. Não queria pensar em justiça ou injustiça. Não era assim.  Cada um ocupava seu lugar na lógica sem sentimentalismo do universo. E ela precisava aceitar isto.
Em sua prática de meditação já havia feito, com bastante dificuldade, aquela em que você visualiza seu corpo morto, respira  e visualiza seu corpo morto, sua carne se descompondo e a respiração sem se alterar. Muito difícil. Mas insistiria. Queria superar esse apego ao corpo. Afinal, ela acreditava no espírito. A morte haveria de ser aquilo que já disseram, o encontro final desta vivência terrestre e o encontro inicial com uma outra realidade.  Mas esta outra realidade insistia em não se mostrar verossímil , por mais que se esforçasse.
Precisava descer e buscar algo para o lanche da noite. Não tinha vontade. Estava tão bem olhando a noite se aproximar, ouvindo a música de Java. A sempre mesma noite. A sempre outra. É maravilhoso este aspecto da globalização, você tem tudo ao seu alcance. Adorava música étnica. Sons tão raros, melodias tão outras, uma abertura para outros espaços. E ela se transportava. Tinha mesmo que descer. Poderia pedir ao Mário, mas coitado, ele teria de parar em algum lugar no caminho de casa, estacionar, descer, enfrentar gente e filas, enquanto para ela era só descer e caminhar uma quadra. Não, não era justo. Iria, traria as coisas de que tanto gostavam seu marido e seu filho e olharia para as caras amadas dos dois comendo com prazer o que ela providenciara. Adorava os seus meninos.
       Buscou um casaquinho, colocou batom (não saía sem batom de jeito nenhum), pegou a bolsa e desceu. Tranqüila. Abriu a porta sem pressa e sentiu o ar fresco da noite. Em sua casa estava tão bem, tão protegida. Precisava admitir, não conseguiria trabalhar fora de casa, não agüentaria a rapidez do cotidiano da cidade, a rispidez das pessoas, os cheiros das ruas, a luta das pessoas. 
A padaria estava relativamente cheia, se tivesse vindo um pouco antes não teria de esperar.  Bem, tudo bem. De vez em quando não fazia o mais conveniente. É que, não sabia porquê, o azul aquele fim de tarde estava especialmente belo, não conseguira afastar-se antes da janela e da vastidão do céu.   Finalmente foi atendida. Pagou, recolheu tudo o que havia comprado, fechou o casaco e saiu à rua. Na verdade não costumava sair sozinha à noite. Seu bairro era relativamente seguro, mas todos dizem que não há mais segurança. Afinal, sua casa estava apenas a uma quadra da padaria. Não havia por que se preocupar. Será que ficava tempo demais sozinha? Por isso esses pensamentos? Será que havia se habituada a estar excessivamente sozinha, com sua pintura, seus pensamentos, sua música?  Não sabia  bem porquê esta hipótese a incomodava.
       Quando se deu conta já estava praticamente colidindo com o mendigo coberto por uma pilha de mantas. Não havia visto o ... o  quê?  Como nomear aquele monte, aquele quase pacote horizontal, aquele incômodo ao ar livre que era o homem coberto por panos sujos? Um pacote horizontal. Sentiu-se profundamente irritada com a quase colisão. Quase havia tocado com a ponta de sua bota nova, cinza, os panos sujos no chão.  Assustou-se e emitiu um som. O homem tirou a cabeça para fora e a olhou nos olhos. A força daquele olhar a atingiu. Ele a olhou de dentro de um lugar que ela desconhecia. De onde ele a olhava?  Ela se desculpou, sem jeito. Ela havia invadido sua casa, assim se sentia. O homem era jovem e a cara não era desagradável. Era forte. Tinha a resistência na cara. Ele a olhara desde um espaço de resistência?  Cara esculpida. Por que estaria nessas condições, se perguntou. Percebeu o leve esboço do desejo de lhe perguntar sobre sua história. Censurou-se e começou o movimento de afastar-se do monte humano a seus pés.
       O homem disse: Não tenha medo Madame. Que grande irritação ouvir-se chamar madame. Era uma verdade que Celeste teimava em não reconhecer. Sim, tinha uma posição social que correspondia a madame. Mas tinha um passado, ideais que continuavam vivos. Não era uma burguesa alienada, isto não. Olhou-o. Não parecia um mendigo. Era como se estivesse ali por acaso. Mas qual acaso? Vontade de perguntar. Não, claro que não, imagine se Mário soubesse desse seu desejo de iniciar conversa com um mendigo. Apertou a bolsa, embora não tivesse quase nada dentro.
Era uma artista. Sua sensibilidade a levava a querer conversar com o homem a seus pés. Não tenho medo, se disse. O homem se incorporou, sentou-se. Ela quis apressar o passo, ele estendeu a mão. Pedia. Pedia que lhe desse esmola. Era enfim um mendigo, como correspondia à situação. Mas o braço que pedia era firme, quase autoritário. Irritou-se com a gestualidade do mendigo. Não, não correspondia. Retirou algumas moedas da bolsa, esticou o braço no gesto de entregá-las quando sentiu a mão do homem. Propositadamente ele fez com que ela tocasse sua mão. Afastou-se precipitadamente, assustada. Quase correu até o portão da casa. Tão próximo. Tão próximo o portão. Tão próximo o mendigo.
       O jantar transcorreu como se nada tivesse acontecido. Mas Mário notou que ela estava silenciosa. Não fizera todos seus habituais relatos sobre o que lhe ocorrera durante o dia, com os habituais comentários que faziam sorrir os meninos, não perguntara tanto sobre o dia do marido, do filho. Na verdade, eles nunca falavam muito. Sobretudo reagiam ao que ela propunha, às suas percepções sobre o dia que transcorrera.
 Durante o jantar olhara muito para sua mão direita. Havia lavado muito, muito bem as mãos. Mas agora a olhava e era como se não tivesse sido lavada. Que incômodo, meu Deus! Não tinha vontade de contar nada a Mário. Ele iria encontrar um modo de criticá-la, tinha certeza disto. Melhor agüentar firme sem falar nada. Durante a noite o marido se aproximou de seu corpo e ela se afastou. Sentia um incômodo que não se ia. Não conseguia voltar a adormecer. Levantou-se, foi para a sala, da janela se via o céu noturno. O silêncio da sala, da casa, a angustiava fisicamente. A organização de tudo, o bem-estar que se respirava. A sorte que lhe havia marcado o destino. Sua mão direita pesava, falava, cheirava, iluminava a noite como uma chaga insuportável. Seu corpo todo pesava. Era como se seu corpo ocupasse aquele espaço de contenção e afeto de um modo diverso, inquietante. Percebeu, de repente, com horror, seu corpo em pé na sala como um pacote. Um pacote vertical. Um belo, sólido, sadio pacote vertical.

domingo, 21 de abril de 2013

Quartos são aposentos, espaços de repouso






Sobre a porta da entrada, desde o interior,
a foto branco e negra da escultura
Eros e Psyché,  de Canova.
Enquadrados  desde o pescoço até a cabeça
por Keiichi Tahara,
eles se olham intensamente
antes do beijo.
Este olhar, esta pré-entrega,
é o umbral do quarto.

Desde o leito se vêem -  portas-janelas escancaram -
 jardim e  céu.
Entre a porta de entrada e as que olham o jardim
há a cômoda chinesa, madeira entalhada  com flores,
vôos de flores, semi-pássaros, pinturas antigas de seres e coisas
 que um dia foram nítidos.
 A cômoda desvela traços árabes , a Rota-da-seda  explica.

Sobre a cômoda, na parede, aplicados em madeira escura
dois bodisatvas esculpidos em osso
dançam  sobre flores-de-lótus
flores que nascem de nuvens. Um frente ao outro.
 Apoiados em um só pé, espelham-se como contrários
feminino e masculino  complementam-se na dança. 
Voam em torno dos brancos  semi-deuses
adereços dos corpos e cabeças.
Sente-se a brisa que os move.

Após a porta de onde se vê o jardim (um Éden?)
sobre altos armários brancos, observam o espaço
 senhor e a senhora chineses. Hieráticos mandarins de madeira
carcomida, cores se desvanecendo  em  vermelho-verde.
Desde outro tempo, miram o aposento, estáticos, serenos.

De um lado deles, uma pintura traz idéia de outro espaço, um terceiro.
Num tempo sem tempo,  que se revela assim nas ruínas da construção
 desconstruída.
Tudo  se confundindo em azuis, cinzas,  rosas,  as pilastras, o cimento.
Pedro Alvim.  Tudo se diluindo na imagem deste  outro
 terceiro espaço, outra margem.

Do outro lado dos mandarins, a gaiola de pássaros.
Típica, emblemática gaiola chinesa com que  o povo  por lá carrega
seus pássaros iguais como se cada um fosse único, milagre do canto.

Atrás da cama, na parede branca, o ideograma do Tao.
Caligrafia. O Tao é a trilha, o caminho, a verdade, a Ordem.
E ele reluz desde o negro no branco, apontando para o alto.
Para a altura, como a flecha que sai de nossas cabeças
Em zazen, buscando  o cosmos. Avidez a ser controlada.

À direita da cama, após cadeira e espelho
- espelho,  em que espelho perdi minha face,
perguntou-se Cecília por todos nós -
na mesma branca parede
o desenho  mínimo,  um  fio de lápis  que compõe
metade de um corpo, lado direito,  perna  e braço
esticados estendendo  a linha que  pé e mão seguram
firmes.  Evandro Salles.
O discreto sexo, encoberto por pelos,  é um círculo,
 entrada para o vazio e o pleno.
E a linha sobra, continua,  enrolada na perna, na mão.
O seio direito apóia-se no braço  como um morro
na encosta.

Desde a cama se vê um móvel  pequeno,
vermelho profundo, enquadrado em negro, linhas retas.
 Sobre ele, um apoiador de pincéis
expõe colares, vaidades de espaços vários.
Pincéis transformados em colares,
a incapacidade para a pintura se desculpa
com a capacidade para a seleção
dos objetos no mundo.

Sobre o móvel, na parede branca,
trabalho de Resa, serigrafia.
Desde o fundo rosa
a renda branca,  sobre eles gotas de sangue.
E o texto azul,  a sussurrar desde o passado, diz:
pau pedra peito pare com isso por favor pode quebrar matar
não faça barulho que não aguento esta gota que não para de cair
não tem cal que feche esse  buraco não há pedra que
encaixe vai ficar sempre aberto que nem pesadelo o corpo
todo roído cortado escorrido pedaço tiras o sangue rápido







segunda-feira, 18 de março de 2013

Voa amorosa


Voa amorosa
Voa  atroz, voa.
Quem voa nesse verso que me acorda?
Quem voa, voa no presente, eu vendo,
ou eu, vento,
 impulsiono um vôo?
Amorosa e atroz. Alada.
Quem voa não é da terra
desta terra quadrúpede.
Desejo que voe? Parta.
Desejo que chegue? Venha.
Desde que deserto, para qual deserto?
Mas é um canto. Ouço
Voa amorosa
Voa atroz, voa
A quem canto?
Me acalanto?
Me chamo desde profundo mar
Bicho marinho atroz
Capaz de vôo
Voa amorosa
Voa atroz, voa


Brasíllia, 18/03/2013