domingo, 21 de abril de 2013

Quartos são aposentos, espaços de repouso






Sobre a porta da entrada, desde o interior,
a foto branco e negra da escultura
Eros e Psyché,  de Canova.
Enquadrados  desde o pescoço até a cabeça
por Keiichi Tahara,
eles se olham intensamente
antes do beijo.
Este olhar, esta pré-entrega,
é o umbral do quarto.

Desde o leito se vêem -  portas-janelas escancaram -
 jardim e  céu.
Entre a porta de entrada e as que olham o jardim
há a cômoda chinesa, madeira entalhada  com flores,
vôos de flores, semi-pássaros, pinturas antigas de seres e coisas
 que um dia foram nítidos.
 A cômoda desvela traços árabes , a Rota-da-seda  explica.

Sobre a cômoda, na parede, aplicados em madeira escura
dois bodisatvas esculpidos em osso
dançam  sobre flores-de-lótus
flores que nascem de nuvens. Um frente ao outro.
 Apoiados em um só pé, espelham-se como contrários
feminino e masculino  complementam-se na dança. 
Voam em torno dos brancos  semi-deuses
adereços dos corpos e cabeças.
Sente-se a brisa que os move.

Após a porta de onde se vê o jardim (um Éden?)
sobre altos armários brancos, observam o espaço
 senhor e a senhora chineses. Hieráticos mandarins de madeira
carcomida, cores se desvanecendo  em  vermelho-verde.
Desde outro tempo, miram o aposento, estáticos, serenos.

De um lado deles, uma pintura traz idéia de outro espaço, um terceiro.
Num tempo sem tempo,  que se revela assim nas ruínas da construção
 desconstruída.
Tudo  se confundindo em azuis, cinzas,  rosas,  as pilastras, o cimento.
Pedro Alvim.  Tudo se diluindo na imagem deste  outro
 terceiro espaço, outra margem.

Do outro lado dos mandarins, a gaiola de pássaros.
Típica, emblemática gaiola chinesa com que  o povo  por lá carrega
seus pássaros iguais como se cada um fosse único, milagre do canto.

Atrás da cama, na parede branca, o ideograma do Tao.
Caligrafia. O Tao é a trilha, o caminho, a verdade, a Ordem.
E ele reluz desde o negro no branco, apontando para o alto.
Para a altura, como a flecha que sai de nossas cabeças
Em zazen, buscando  o cosmos. Avidez a ser controlada.

À direita da cama, após cadeira e espelho
- espelho,  em que espelho perdi minha face,
perguntou-se Cecília por todos nós -
na mesma branca parede
o desenho  mínimo,  um  fio de lápis  que compõe
metade de um corpo, lado direito,  perna  e braço
esticados estendendo  a linha que  pé e mão seguram
firmes.  Evandro Salles.
O discreto sexo, encoberto por pelos,  é um círculo,
 entrada para o vazio e o pleno.
E a linha sobra, continua,  enrolada na perna, na mão.
O seio direito apóia-se no braço  como um morro
na encosta.

Desde a cama se vê um móvel  pequeno,
vermelho profundo, enquadrado em negro, linhas retas.
 Sobre ele, um apoiador de pincéis
expõe colares, vaidades de espaços vários.
Pincéis transformados em colares,
a incapacidade para a pintura se desculpa
com a capacidade para a seleção
dos objetos no mundo.

Sobre o móvel, na parede branca,
trabalho de Resa, serigrafia.
Desde o fundo rosa
a renda branca,  sobre eles gotas de sangue.
E o texto azul,  a sussurrar desde o passado, diz:
pau pedra peito pare com isso por favor pode quebrar matar
não faça barulho que não aguento esta gota que não para de cair
não tem cal que feche esse  buraco não há pedra que
encaixe vai ficar sempre aberto que nem pesadelo o corpo
todo roído cortado escorrido pedaço tiras o sangue rápido