quinta-feira, 2 de maio de 2013

CELESTE




Celeste olhava o céu e o céu se confundia com seus olhos absolutamente azuis. A tarde chegava ao fim, como todos os dias. Era bom morar em uma rua larga, árvores antigas dos dois lados, sombras que se multiplicavam, que propunham brincadeiras ao seu olhar. Bom não ter um vizinho encarando você, viver num espaço que permitia amplamente a entrada do sol.
Ela precisava de luz, fundamental para sua pintura. Era uma mulher feliz. Tinha quase vergonha de reconhecer isto com tanta facilidade. Não podia ficar alardeando, não comentava com os outros a sua felicidade. Frente às histórias das mulheres que conhecia, frente à realidade que se escancarava por todos os lados,  sua felicidade era algo inadequado, precioso portanto.
Havia estudado, havia casado, tido um filho, fazia seu trabalho em casa, não precisava sofrer o que todos, todas que trabalhavam fora padeciam. O trânsito, as horas perdidas em carros e ônibus, a poluição, o ambiente competitivo do trabalho, a neurose das pessoas. Nada disto. Era uma mulher de sorte, de muita sorte. Amava e era amada de modo tranqüilo, pacificado. O marido era um homem resolvido, ganhava bem, gostava do que fazia, confiava nela. Seu filho era um rapaz bonito, inteligente, estudava, saía com os amigos, namorava.
Às vezes se perguntava por que havia tido este destino – e parava para escutar de novo a palavra escolhida, destino; e as coisas, os seres têm realmente destino? -  tão transparente.  Nunca encontrava resposta. Em suas leituras e viagens se aproximara naturalmente do conceito de karma.  Passou a aceitar com maior naturalidade seu destino talvez kármico, sua boa estrela, a estrela menos boa dos outros, a péssima estrela de tantos.
  Cada tanto,  ainda se perturbava; sobretudo com a exposição de chagas pelas ruas, em troca de dinheiro. Os corpos mutilados. Queria aceitar com sabedoria hindu esses corpos atirados e pedintes, mas quanto lhe custava. Não queria pensar em justiça ou injustiça. Não era assim.  Cada um ocupava seu lugar na lógica sem sentimentalismo do universo. E ela precisava aceitar isto.
Em sua prática de meditação já havia feito, com bastante dificuldade, aquela em que você visualiza seu corpo morto, respira  e visualiza seu corpo morto, sua carne se descompondo e a respiração sem se alterar. Muito difícil. Mas insistiria. Queria superar esse apego ao corpo. Afinal, ela acreditava no espírito. A morte haveria de ser aquilo que já disseram, o encontro final desta vivência terrestre e o encontro inicial com uma outra realidade.  Mas esta outra realidade insistia em não se mostrar verossímil , por mais que se esforçasse.
Precisava descer e buscar algo para o lanche da noite. Não tinha vontade. Estava tão bem olhando a noite se aproximar, ouvindo a música de Java. A sempre mesma noite. A sempre outra. É maravilhoso este aspecto da globalização, você tem tudo ao seu alcance. Adorava música étnica. Sons tão raros, melodias tão outras, uma abertura para outros espaços. E ela se transportava. Tinha mesmo que descer. Poderia pedir ao Mário, mas coitado, ele teria de parar em algum lugar no caminho de casa, estacionar, descer, enfrentar gente e filas, enquanto para ela era só descer e caminhar uma quadra. Não, não era justo. Iria, traria as coisas de que tanto gostavam seu marido e seu filho e olharia para as caras amadas dos dois comendo com prazer o que ela providenciara. Adorava os seus meninos.
       Buscou um casaquinho, colocou batom (não saía sem batom de jeito nenhum), pegou a bolsa e desceu. Tranqüila. Abriu a porta sem pressa e sentiu o ar fresco da noite. Em sua casa estava tão bem, tão protegida. Precisava admitir, não conseguiria trabalhar fora de casa, não agüentaria a rapidez do cotidiano da cidade, a rispidez das pessoas, os cheiros das ruas, a luta das pessoas. 
A padaria estava relativamente cheia, se tivesse vindo um pouco antes não teria de esperar.  Bem, tudo bem. De vez em quando não fazia o mais conveniente. É que, não sabia porquê, o azul aquele fim de tarde estava especialmente belo, não conseguira afastar-se antes da janela e da vastidão do céu.   Finalmente foi atendida. Pagou, recolheu tudo o que havia comprado, fechou o casaco e saiu à rua. Na verdade não costumava sair sozinha à noite. Seu bairro era relativamente seguro, mas todos dizem que não há mais segurança. Afinal, sua casa estava apenas a uma quadra da padaria. Não havia por que se preocupar. Será que ficava tempo demais sozinha? Por isso esses pensamentos? Será que havia se habituada a estar excessivamente sozinha, com sua pintura, seus pensamentos, sua música?  Não sabia  bem porquê esta hipótese a incomodava.
       Quando se deu conta já estava praticamente colidindo com o mendigo coberto por uma pilha de mantas. Não havia visto o ... o  quê?  Como nomear aquele monte, aquele quase pacote horizontal, aquele incômodo ao ar livre que era o homem coberto por panos sujos? Um pacote horizontal. Sentiu-se profundamente irritada com a quase colisão. Quase havia tocado com a ponta de sua bota nova, cinza, os panos sujos no chão.  Assustou-se e emitiu um som. O homem tirou a cabeça para fora e a olhou nos olhos. A força daquele olhar a atingiu. Ele a olhou de dentro de um lugar que ela desconhecia. De onde ele a olhava?  Ela se desculpou, sem jeito. Ela havia invadido sua casa, assim se sentia. O homem era jovem e a cara não era desagradável. Era forte. Tinha a resistência na cara. Ele a olhara desde um espaço de resistência?  Cara esculpida. Por que estaria nessas condições, se perguntou. Percebeu o leve esboço do desejo de lhe perguntar sobre sua história. Censurou-se e começou o movimento de afastar-se do monte humano a seus pés.
       O homem disse: Não tenha medo Madame. Que grande irritação ouvir-se chamar madame. Era uma verdade que Celeste teimava em não reconhecer. Sim, tinha uma posição social que correspondia a madame. Mas tinha um passado, ideais que continuavam vivos. Não era uma burguesa alienada, isto não. Olhou-o. Não parecia um mendigo. Era como se estivesse ali por acaso. Mas qual acaso? Vontade de perguntar. Não, claro que não, imagine se Mário soubesse desse seu desejo de iniciar conversa com um mendigo. Apertou a bolsa, embora não tivesse quase nada dentro.
Era uma artista. Sua sensibilidade a levava a querer conversar com o homem a seus pés. Não tenho medo, se disse. O homem se incorporou, sentou-se. Ela quis apressar o passo, ele estendeu a mão. Pedia. Pedia que lhe desse esmola. Era enfim um mendigo, como correspondia à situação. Mas o braço que pedia era firme, quase autoritário. Irritou-se com a gestualidade do mendigo. Não, não correspondia. Retirou algumas moedas da bolsa, esticou o braço no gesto de entregá-las quando sentiu a mão do homem. Propositadamente ele fez com que ela tocasse sua mão. Afastou-se precipitadamente, assustada. Quase correu até o portão da casa. Tão próximo. Tão próximo o portão. Tão próximo o mendigo.
       O jantar transcorreu como se nada tivesse acontecido. Mas Mário notou que ela estava silenciosa. Não fizera todos seus habituais relatos sobre o que lhe ocorrera durante o dia, com os habituais comentários que faziam sorrir os meninos, não perguntara tanto sobre o dia do marido, do filho. Na verdade, eles nunca falavam muito. Sobretudo reagiam ao que ela propunha, às suas percepções sobre o dia que transcorrera.
 Durante o jantar olhara muito para sua mão direita. Havia lavado muito, muito bem as mãos. Mas agora a olhava e era como se não tivesse sido lavada. Que incômodo, meu Deus! Não tinha vontade de contar nada a Mário. Ele iria encontrar um modo de criticá-la, tinha certeza disto. Melhor agüentar firme sem falar nada. Durante a noite o marido se aproximou de seu corpo e ela se afastou. Sentia um incômodo que não se ia. Não conseguia voltar a adormecer. Levantou-se, foi para a sala, da janela se via o céu noturno. O silêncio da sala, da casa, a angustiava fisicamente. A organização de tudo, o bem-estar que se respirava. A sorte que lhe havia marcado o destino. Sua mão direita pesava, falava, cheirava, iluminava a noite como uma chaga insuportável. Seu corpo todo pesava. Era como se seu corpo ocupasse aquele espaço de contenção e afeto de um modo diverso, inquietante. Percebeu, de repente, com horror, seu corpo em pé na sala como um pacote. Um pacote vertical. Um belo, sólido, sadio pacote vertical.