Sobre a porta
da entrada, desde o interior,
a foto branco
e negra da escultura
Eros e
Psyché, de Canova.
Enquadrados desde o pescoço até a cabeça
por Keiichi
Tahara,
eles se olham
intensamente
antes do
beijo.
Este olhar,
esta pré-entrega,
é o umbral do
quarto.
Desde o leito
se vêem - portas-janelas escancaram -
jardim e céu.
Entre a porta
de entrada e as que olham o jardim
há a cômoda
chinesa, madeira entalhada com flores,
vôos de
flores, semi-pássaros, pinturas antigas de seres e coisas
que um dia foram nítidos.
A cômoda desvela traços árabes , a Rota-da-seda
explica.
Sobre a
cômoda, na parede, aplicados em madeira escura
dois bodisatvas
esculpidos em osso
dançam sobre flores-de-lótus
flores que
nascem de nuvens. Um frente ao outro.
Apoiados em um só pé, espelham-se como
contrários
feminino e masculino
complementam-se na dança.
Voam em torno
dos brancos semi-deuses
adereços dos
corpos e cabeças.
Sente-se a
brisa que os move.
Após a porta
de onde se vê o jardim (um Éden?)
sobre altos
armários brancos, observam o espaço
senhor e a senhora chineses. Hieráticos
mandarins de madeira
carcomida,
cores se desvanecendo em vermelho-verde.
Desde outro
tempo, miram o aposento, estáticos, serenos.
De um lado
deles, uma pintura traz idéia de outro espaço, um terceiro.
Num tempo sem
tempo, que se revela assim nas ruínas da
construção
desconstruída.
Tudo se confundindo em azuis, cinzas, rosas,
as pilastras, o cimento.
Pedro
Alvim. Tudo se diluindo na imagem deste outro
terceiro espaço, outra margem.
Do outro lado
dos mandarins, a gaiola de pássaros.
Típica, emblemática
gaiola chinesa com que o povo por lá carrega
seus pássaros
iguais como se cada um fosse único, milagre do canto.
Atrás da
cama, na parede branca, o ideograma do Tao.
Caligrafia. O
Tao é a trilha, o caminho, a verdade, a Ordem.
E ele reluz
desde o negro no branco, apontando para o alto.
Para a
altura, como a flecha que sai de nossas cabeças
Em zazen,
buscando o cosmos. Avidez a ser
controlada.
À direita da
cama, após cadeira e espelho
- espelho, em que
espelho perdi minha face,
perguntou-se
Cecília por todos nós -
na mesma
branca parede
o desenho mínimo,
um fio de lápis que compõe
metade de um
corpo, lado direito, perna e braço
esticados
estendendo a linha que pé e mão seguram
firmes. Evandro Salles.
O discreto
sexo, encoberto por pelos, é um círculo,
entrada para o vazio e o pleno.
E a linha
sobra, continua, enrolada na perna, na
mão.
O seio
direito apóia-se no braço como um morro
na encosta.
Desde a cama
se vê um móvel pequeno,
vermelho
profundo, enquadrado em negro, linhas retas.
Sobre ele, um apoiador de pincéis
expõe
colares, vaidades de espaços vários.
Pincéis
transformados em colares,
a
incapacidade para a pintura se desculpa
com a capacidade
para a seleção
dos objetos
no mundo.
Sobre o
móvel, na parede branca,
trabalho de
Resa, serigrafia.
Desde o fundo
rosa
a renda
branca, sobre eles gotas de sangue.
E o texto
azul, a sussurrar desde o passado, diz:
pau pedra peito pare com isso por favor pode
quebrar matar
não faça barulho que não aguento esta gota que
não para de cair
não tem cal que feche esse buraco não há pedra que
encaixe vai ficar sempre aberto que nem
pesadelo o corpo
todo roído cortado escorrido pedaço tiras o
sangue rápido