Na relação com o desejo
a realidade só aparece como marginal (Lacan)
Olho vejo escuto ouço tudo tanto quanto concreto
posso até sentir o gosto da pele daquele
o cheiro da boca do outro
quase posso tocar a sujeira desses meninos iugoslavos
(meu país, a infância em meu país)
Tudo tanto quanto concreto central
e alucinante
é tudo isso
me fragmento no meio disso
nasci na Albânia
não posso ficar aqui
no manicômio tampouco
procuro ansiosamente a margem
mas a realidade é um centro nu
que especifica o vazio
(do livro Coito com o real)
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
Arpoador
Meu filho me instalou numa janela
frente ao mar
Atrás dela havia, sim, um quarto
mas o filho reservara
o mar. Arpoador.
Vinte horas
Dormi o menos que pude, adormeci sem sentir -
ouvido na voz do tempo, a do mar
Aquele som de dentro, aquele som de fora
Topos intermináveis, léxicos desatentos
sal por toda parte
O mar, indo, vindo, chegando até mim agora,
tempos depois, acumulado
agulhas no peito, o próprio da vida
- la
incertidumbre, como se diz em espanhol.
(o quarto lá, no mesmo lugar)
quarta-feira, 7 de novembro de 2012
Crônica sobre IRIKU - um réquiem para Pina Bausch, de Tadashi Endo
Um corpo. Aquele corpo. Um corpo Pina Bausch. O
silêncio a figura estática a escuridão, a leitura que Tadashi Endo nos propõe,
o lento alçar-se do personagem. Auréola de luz projetada no rosto que de Cristo
vira Buda tailandês e depois cara de horror (O Grito?).
O ator se levanta. O cenário em que se move é o espaço negro do
palco com um retângulo de metal dependurado.
Endo gruda-se em um lado da lâmina, que gira. Naquele elemento
(retângulo com homem) pode se ver a terra em
rotação (tu não tem moves de ti). Outro momento, no retângulo-lâmina-espelho
que reflete ator que dança, pura beleza. O corpo bausch, música da alma. Outro
momento, Sísifo a carregar nas costas múltiplo retângulo - tudo é possível para quem tem dois pés. E isto
se trata de dança. Outro momento, ouve-se trecho da Melodia Sentimental da Floresta Amazônica, de Villa-Lobos, que diz: Acorda, vem ver a lua/Que dorme na noite
escura/que surge tão bela e branca/Derramando doçura/Clara chama silente/Ardendo
meu sonhar/As asas da noite que surgem/E correm no espaço profundo.
Mais adiante, em retângulo no chão, Narciso nu
funde–se consigo, ao levantar-se, ama-se
ao som de inesperado Gardel. De repente Cristo
reaparece naquele corpo deitado – voz mulher em neo-gospel where you there when they nailed him to the cross? /sometimes it causes
me to tremble. Às vezes isso me faz tremer. Isso. É o que
canta a voz. A música falando por ele, em três línguas, explícito.
As construções: Vazio - o tempo parado e lento do
começo do Réquiem. Catedral de som - adentramos como num túnel, fundo no universo, as transformações
se seguem. Jardim ao luar -
inexistente - belo é ouvir e ver. Ao final do solo Réquiem, está em cena enorme
imagem que remete à Pina Bausch em Café Muller
(o vestido branco que Endo também veste).
Do monge em negro do
princípio à semi-deusa toda branca. A abstração da dança, que passa pelo corpo
nu. Os braços de Pina, os braços tão magros e estendidos como os braços magros e estendidos
de Endo. Muito além do óbvio masculin/feminin/ying/yang/negro/branco/butoh/balet
contemporâneo. O que há é homenagem a uma morta a mais entre os mortos amados
de Endo. Kazuo Ono também. IRIKU – não
sei o que diz a palavra. Sei o gesto do autor/leitor/ a leitura/releitura da
dança e a mostra de si, do outro, o nó do umcomooutro. A co-autoria. A letra - do outro, da música do outro que
Endo escolhe - em português, espanhol e francês. O que a música sem palavras do
espetáculo disse: eu sou Tadashi Endo que vivo KazuoPina neste aqui momento e
mostro meu sangue amarelo na cruz ocidental, que aceito, tendo a música como
canal sagrado. Encosto-me ao corpo de Pina e dançamos o réquiem, este solo para poucos.
O sol. A lua. A terra que se
move. Rotação e translação. Tudo é movimento mesmo quando se é um só.
(busco online: IKIRU é o
nome original do esplêndido VIVER, de Kurosawa cito: “VIVER...apresenta a visão da
compaixão, mostrando a beleza da vida de um homem a partir da explosão de sua
morte.... O
resultado é um olhar multifacetado da vida e suas perspectivas.”)
18/03/2012, no Teatro da Caixa Bsb
segunda-feira, 5 de novembro de 2012
Sous verre
No espelho, pintados sobre ele,
estão a dama chinesa
a mesa e a pilha de livros.
Longilínea, sob a leve túnica,
alça com branca mão o pincel.
O resto da imagem é quase apenas
espelho.
No canto, há uma pedra
rocha, ou outra coisa do mundo
natural.
Dessas coisas mutantes da
natureza
que não sabemos bem nomear.
A chinesa, em pé, se impõe sobre
o fundo
do vidro. Fundo como água, lago,
céu.
Um acaso encontrar tal imagem
naquela tarde em que
tudo era tão igual.
Ela frente aos livros
(a serem lidos? tatuados?)
Ela, então, plena e mínima
no espaço do vidro, chamou-me
como
em um canto.
Hoje a dama, a escritora,
a leitora em leito especular
mira o vazio partida em dois
como sem olhos.
Restaurada, mas em dois.
A marca que corta o vidro desenha
um V
(a comovente fragilidade dos
vidros ).
A dama, o vidro quebrado
a casual imposição do corte
parecem modificar
uma escritura possível.
A escritura real, o recorte no vidro,
nos mira qual ferida aberta.
Superlativo do efêmero.
domingo, 4 de novembro de 2012
O banho do mendigo
Avenida Paulista, três da tarde, sábado de março, 2012.
A
este mendigo não consigo não dar esmola
- na bolsa dois reais ou vinte, retiro a nota de dois, menos crack,
penso - quando me pede olhando nos olhos dizendo to com muita fome. Alto, muito magro, cabelos nos ombros.
Vejo o grupo de rapazes
ruidosos do outro lado do vão da Bo Bardi - em frente ao espelho d’água que
separa o museu do outro prédio - ao mesmo tempo em que vejo o mendigo alto
(aquele mendigo) ultrapassar-me e dirigir-se a eles. A fome, me digo, era mesmo
aquela, não a do pão. E encolho os ombros.
Enquanto me dirijo para a
fila dos ingressos observo o grupo. A desordenada
alegria e o mendigo alto que gesticula, parece
explicar serem dois reais tudo o
que tem. Um rapaz – todos pardos, negros, uns dez – que negaceia, é muito
pouco. Se forma uma pequena torcida
entre os que apóiam o mendigo alto e os que concordam com aquele que parece
dizer ser pouco. Outro rapaz, sentado no chão, oferece uma garrafa de plástico
grande, com um líquido transparente ao Mendigo Alto. Ele bebe, agradece e continua a negociar com
o que, para mim, é o chefe do ponto. De repente vejo que há um acordo. O
Mendigo Alto se afasta do grupo e segue com o outro rapaz para um canto, no
final à direita do espelho d’água.
Imagino que cena verei. Mas não. O Mendigo
Alto retira a camisa, coloca-a sobre a bancada de cimento e deixa as havaianas
no chão. Retorna junto ao grupo assim, sem ter fumado. Atrapalho as pessoas na
fila, minha atenção absoluta à cena que transcorre do outro lado do vão não
chama a atenção de ninguém, só meu atraso incomoda.
O Mendigo Alto é recebido
pelo grupo com sons alegres. Alguns rapazes se colocam na frente dele, não o
vejo por segundos e em seguida escuto palmas, gritos e vejo água saltando no
ar. O Mendigo Alto brinca no espelho d’água. O grupo comemorava o fato de ele
ter vencido a negociação. Poderá banhar-se por dois reais. O sol na principal
Avenida do Capital Brasileiro era forte e o movimento intenso.
Desde o observatório
privilegiado da fila do Masp, vejo algo que talvez tantos tenham visto,
filmado, colocado no UTube, mas que, para mim, foi o primeiro banho a que
assisti. Embora a cena se oferecesse a todos, apenas meus olhos a viam.
O Mendigo Alto (o meu mendigo)
era banhado por dois rapazes, aquele com
quem negociara e o outro que o acompanhara até o canto. Eles o instruíam
criteriosamente nessa lavagem de um corpo. Ele alçava os braços magros (um corpo
assim como o de Cristo), eles o ensaboavam atentamente, esfregavam axilas,
costas, lavavam-lhe a cabeça com cuidado materno. O Mendigo Alto submergia-se
no espelho e retornava e cada vez era saudado pelos companheiros. Alegrias. O
gozo de todos. A fome era de água, de
corpo limpo. O Mendigo Alto recuperava seu status de pessoa ali, naquele banho,
água suja e cristalina.
Um dos dois “rapazes do
banho” (talvez sejam conhecidos) se aproxima com uma grande toalha e junto com
o outro (o que eu pensava ser o dono do ponto e quem sabe também o seja) envolvem
com elegância o mendigo lavado. Pude ver
o corpo magro nu rapidamente, sem manchas. (no Masp duas versões do Banho de
Suzana me aguardavam).
Um dos dois rapazes aproxima
a calça, as havaianas que são colocadas com calma, como se estivessem
impecáveis. E então o Mendigo Alto, vestido e banhado, se senta na borda do
espelho d’água e o ritual se completa. Um dos dois “banhadores” chega com algo
nas mãos, espalha nos cabelos do companheiro, a quem penteia a seguir com
cuidado e estilo. O outro traz-lhe a camisa suja de antes e esta camisa é
vestida com a ajuda dos dois companheiros.
O Mendigo Alto e seus Ajudantes se tornam personagens medievais - um
senhor e seus servos, no ato final do ritual do banho. Farto, pleno, seus
gestos são lentos, talvez nem fome sinta.
Tudo volta ao normal, o meu
mendigo alto conversa com o grupo, integra-se à balburdia dos jovens. Chega
minha vez, compro o ingresso, saio da fila para alívio dos que estão atrás. A
cultura está no museu, não na cena que todos poderiam ter observado, onde um
ethos tão nosso se expôs gratuitamente.
Nas duas representações do
Banho de Suzana as cenas são bem diversas. Em uma, apenas a bela em sua nudez,
as ajudantes e a natureza. Na outra, à
esquerda da tela, a inquietação de dois faunos presentes à cena, um deles com um
instrumento musical primitivo; à direita um cervo deitado, as patas para o alto
(morto?), os galhos da cabeça apoiados na grama e dois inesperados cãezinhos
subidos em cada lado do corpo (morto?)
do cervo. A nudez de Susana não me interessou, só o entorno. Quanto à nudez do
meu Mendigo, sim, branca e mínima; o entorno paulista como um grande negro vazio.
Termino a tarde vendo passar
pela Avenida uma limousine negra de onde saem, por duas janelas e por uma
abertura no teto, várias mocinhas vestidas de branco. Encantadas, sorridentes,
abanam para os da rua. Banhadas, maquiadas, vestidas Suzanas que só se deixam ver
assim, travestidas, que talvez nem se conheçam nuas, despojadas, que talvez não
saibam, nunca venham a saber o que exatamente significou desfilar em limousine
aos quinze anos pela Paulista.
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